sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Estudar no Japão é...

Depois que o despretensioso post "Morar no Japão é..." repercutiu tanto, decidi fazer um
similar, mas dessa vez sobre curiosidades do ensino no Japão.

Acredito que não são muitas as pessoas que tiveram esse privilégio (ou infelicidade? Cada um pode tirar suas conclusões, ao término da lista!) de frequentar escola primária e ginásio (sei que soa antiquado chamar assim) na terra das melancias quadradas, portanto talvez esta lista seja até mais surpreendente que a primeira.

Alguns itens dizem respeito à minha experiência pessoal, e que portanto podem não ser
aplicáveis a qualquer escola, mas acho que o padrão não sai muito disto:

Estudar no Japão é...

  1. Ficar na escola das 8 da manhã até as 4 da tarde (ou 7 da noite, do ginásio em diante).
  2. Rapidamente concluir que o ensino público de lá é superior ao ensino privado brasileiro, em muitos quesitos.
  3. Estudar 6 anos de primário, 3 de ginásio e mais 3 de colegial (ensino superior varia).
  4. Iniciar o ano letivo em abril e terminá-lo em março.
  5. Seguir um calendário trimestral (abril a julho, setembro a dezembro e janeiro a março).
  6. Ter aula de caligrafia com pincel (習字・しゅうじ).
  7. Precisar passar no vestibular para entrar no 高校(こうこう), colegial.
  8. Descobrir que existe cerimônia para tudo: início do ano letivo, término do trimestre, início do trimestre, recepção e despedida de estagiários, recepção de novos alunos, despedida de professores, formatura etc.
  9. Precisar trocar de sapatos para entrar na escola, do mesmo jeito que é feito nos lares.
  10. Praticamente nunca ouvir algo do tipo "Fulano matou aula hoje" (porque os pais não toleram esse tipo de coisa).
  11. Ao se mudar de cidade, ser automaticamente alocado na escola pública mais próxima (ou seja, os pais não precisam ir atrás de escola para os filhos).
  12. Marchar como militar nas reuniões matinais, em que são dados recados gerais.
  13. Ter almoço gratuito na escola, até o ginásio, servido pelos próprios alunos, em um esquema de revezamento semanal.
  14. Usar avental, touca e máscara (fornecidos pela escola) para servir o almoço.
  15. Concluir que seu primeiro nome não tem importância, pois é chamado só pelo sobrenome (exceto no caso dos estrangeiros: eu era conhecido como Gabu).
  16. Durante o primário, ter um único professor para todas as matérias, com exceção de música.
  17. A partir do ginásio, iniciar e terminar cada aula com uma saudação entre professor e alunos: 「お願(ねが)いします」, "Por favor", no início e 「ありがとうございました」, "Obrigado", no fim (é também comum que os professores exijam que os alunos se levantem, endireitem a postura e, aí sim, saúdem).
  18. Constatar que muita coisa é padronizada, mesmo não sendo obrigatória: calçado com detalhe azul para os meninos, e vermelho para as meninas; bolsa preta para eles e vermelha para elas etc.
  19. No inverno, estudar com um baita aquecedor queimando querosene dentro da sala.
  20. Fazer a limpeza da escola inteira, depois do almoço (isso, inclusive dos banheiros!), todos os dias.
  21. Aprender a tocar algum instrumento: flauta (obrigatoriamente), teclado, percussão etc.
  22. Ter o primeiro contato oficial com o alfabeto romano na quarta série.
  23. Precisar se apresentar na frente de todos, se for aluno novo (mesmo que mal saiba escrever o próprio nome, como foi o meu caso).
  24. Descobrir que oficialmente, "tirar no pô", é chamado "jankenpo".
  25. Ser obrigado a participar de maratona (sim, corrida, resistência!) no inverno, e se estiver nevando, o problema é seu.
  26. Aprender a pular corda (individual), e descobrir que isso é visto como uma modalidade esportiva.
  27. Descobrir que é obrigatório que as escolas sigam um padrão mínimo: salas de aula, pátio e ginásio.
  28. Observar que tudo na escola é feito com planejamento e muita seriedade.
  29. Ter monociclos na escola (saber andar já é outra história!).
  30. Aprender a costurar e descascar frutas e legumes, e isso na quinta série!
  31. Aprender a respeitar os professores, mesmo que na marra.
  32. Ouvir o tradicional toque de sino no início e término das aulas.
  33. Não ter cantina na escola, até o ginásio.
  34. Poder contar com salas específicas para culinária, artes, música, carpintaria etc.
  35. Periodicamente, ser obrigado a fazer exame de urina, vermes, fezes... (argh...).
  36. Receber visita trimestral (ou anual, não lembro) de um dentista, que passa um corante vermelho nos dentes de cada aluno e manda escová-los, para ver quem não sabia escovar direito.
  37. Ter a cabeça examinada pelo professor, à busca de piolhos.
  38. Todos os dias, antes do início das aulas, responder a chamada, que também serve como monitoramento de saúde (por exemplo, responde-se "Presente, e estou bem", ou "Presente, e estou com pedras no rim").
  39. Ser proibido de usar lapiseira até a quinta série (pelo menos na minha escola!).
  40. Precisar usar crachá, contendo nome completo, ano letivo, turma e tipo sanguíneo (é, pensam até nisso).
  41. Ter o seu sobrenome bordado na roupa de educação física.
  42. Poder participar de olimpíadas esportivas regionais, se se destacar nas aulas de educação física.
  43. No primário, ter que usar uma roupa de educação física composta por uma camisa polo e shortinho. No inverno, tem manga longa, mas o shortinho continua.
  44. Ser proibido de usar várias coisas (na escola, claro): óculos escuros, perfume, cabelo (des)colorido, maquiagem, brincos, pulseiras etc. (não que eu quisesse usar esses 4 últimos itens).
  45. Precisar usar uniforme; em alguns lugares, desde o primário; em outros, desde o ginásio.
  46. Anualmente, fazer treinamento para situações de emergência, como incêndio e terremoto.
  47. Precisar escrever muitas, muitas redações.
  48. Descobrir que as férias (principalmente as de verão) são uma farsa: te dão tarefa, e em grandes quantidades. Ai de quem não fizer tudo.
  49. No primário, precisar ir para a escola em um grupo, pré-determinado pela própria escola, em fila indiana.
  50. Suar para memorizar mais de 1000 kanji até a sexta série, mais uma cacetada no ginásio e assim por diante.
  51. Ter o espírito de liderança cultivado desde pequeno: tem chefe da sala, do grupo da sala, do grupo de ida à escola etc.
  52. No começo do ano letivo, receber uma visita do professor responsável pela classe, com o objetivo de conhecer os pais do aluno e sob quais condições ele vive.
  53. Trimestralmente, ter um dia em que os pais vão à escola a ficam no fundo da sala, acompanhando as aulas.
  54. Ser avaliado trimestralmente com uma nota para cada disciplina, de 1 a 10.
  55. Mesmo que termine uma prova em 15 minutos, ter que esperar no seu lugar, sentado e calado, até o final do tempo estabelecido.
  56. Precisar escrever diário, que o professor recolhe, lê e faz anotações (na minha sala, era todo santo dia).
  57. Participar, por um dia, do plantio de arroz (pelo menos na minha escola, que era rodeada de arrozais).
  58. Receber um álbum de formatura que aparenta seguir o mesmo modelo desde a Era Meiji.
  59. Chamar a matemática do primário de 算数・さんすう, /san.sū/ e a do ginásio para cima, de 数学・すうがく, /sū.gaku/.
  60. Ficar impressionado com o hábito de leitura dos colegas.
  61. Seguir um calendário anual que parece ser padronizado pro país inteiro.
  62. Descobrir que toda escola do país tem um hino, e você tem de saber cantá-lo de cor.
  63. Participar de eventos obrigatórios como Bunkasai (Feira Cultural), Undokai (gincana esportiva), a já citada maratona, entre outros.
  64. Por mais desafinado que seja (eu até que me garantia), ser obrigado a participar do coral da classe, que se apresenta na Feira Cultural.
  65. Precisar treinar e ensaiar para o Undokai, desde quase 2 meses antes da apresentação, para que, como tudo, seja perfeitamente organizado, com cerimônia de abertura/encerramento, discursos, canto, entrega de troféus etc.
  66. Ter um professor de inglês que parece ter sido discípulo do Joel Santana: "Rettsu singu Retto itto bii" (Let's sing "Let it be"), "Aimu fain, sankyuu" (I'm fine, thank you), "Purizu gibu mi a pisu obu appurupai" (Please give me a piece of apple pie) etc.
  67. Participar de excursão da escola na sexta série, em que é permitido levar guloseimas no valor de, no máximo, ¥320 (equivalente a +/- R$5,00).
  68. Do ginásio para frente, ter duas semanas de prova por trimestre: uma no meio e outra no término.
  69. Ficar sabendo de colegas que, ainda no ginásio, varam a noite estudando para as provas.
  70. Ter colegas que, na sexta série, estão se preparando para o vestibular de escolas privadas (detalhe: estou falando de ginásio!).
  71. Ter professores que ditam o que você pode e não pode fazer dentro e fora da escola.
  72. Poder contar com professores especializados em ensino a crianças excepcionais.
  73. No ginásio e colegial, ser obrigado a fazer parte de um clube (baseball, tênis, tênis de mesa, vôlei, música, computação etc.), que tem atividades diárias, após as aulas, e até nos finais de semana e durante as férias.
  74. Sofrer ijime (bullying) e não pedir ajuda a ninguém (eu nunca sofri, mas sabe-se que é um problema recorrente no Japão).
  75. Até o ginásio, não poder levar dinheiro para a escola.
  76. Ganhar chocolate de uma menina no dia 14 de fevereiro, Valentine's Day, e retribuir (ou não) no dia 14 de março, White Day (esta, uma invenção japonesa).
  77. Não ver casaiszinhos namorando na escola, até porque é proibido até o ginásio.
  78. Ser proibido de consumir balas, doces e refrigerantes dentro das dependências da escola.
  79. Não escovar os dentes após o almoço na escola (até eu entrei nessa!).
  80. Poder ir de bicicleta à escola (ginásio) apenas se morar a uma distância mínima pré-estabelecida.
  81. Virar a fofoca do ano pelo simples fato de andar pelo corredor junto com uma colega (eu não, porque não tinha tamanha ousadia!).
  82. Precisar entregar um mini-relatório diário do grupo, dizendo como cada um se portou durante o dia.
  83. No ginásio e colegial, passar por uma avaliação física no início do ano, que inclui prova de resistência (1500 m, se não me engano), salto em distância, arremesso de peso, 100 metros rasos, salto em altura etc.
  84. No intervalo de atividades físicas, quando está quente, beber chá de trigo ( 麦茶・むぎちゃ)gelado no lugar de água.
  85. Ter uma matéria cuja avaliação é o seu desempenho no cultivo de uma flor de crisântemo.
  86. Ao ingressar no ginásio, automaticamente começar a chamar os alunos do segundo e terceiro ano de veteranos (先輩・せんぱい)e usar a forma polida (敬語・けいご) para conversar com eles.
  87. Estudar Cálculo Diferencial e Integral no colegial.
  88. Na formatura do primário (sexta série), cantar músicas melodramáticas dedicadas aos formandos, com letras que dizem algo do tipo "Parabéns por este dia maravilhoso, e adeus até que nos encontremos novamente...!", "O esplendor da sua imagem de asas abertas ardem nos meus olhos...!" etc., sendo que todos vão continuar se vendo no ano seguinte.
  89. Receber uma espécie de quadro contendo um recadinho de despedida de cada colega da classe, ao mudar de escola.
  90. Considerar todo esse rigor na escola uma coisa natural, assim como os estudantes do Brasil consideram a sua vida mansa na escola algo óbvio (e muitos reclamam, ainda!).
  91. Ficar sempre pensando: "E se no Brasil fosse assim...?".

Bom, no Brasil jamais funcionaria um sistema de ensino como esse (aliás, existe algum que funcione no Brasil?), por motivos óbvios.

Não que o modelo japonês seja o ideal (nem mesmo para os próprios japoneses), porque existem pais e professores que exageram no nível de cobrança, o que causa sérios problemas psicológicos, em muitos casos.

Mas por outro lado, não é difícil concluir que o Japão conseguiu se estruturar de maneira tão organizada graças a sua educação rigorosa, que exige muita dedicação e disciplina em tudo, desde cedo.

Foi interessante escrever sobre meus dias de escola no Japão, pois lembrei de muitas e muitas recordações; muitas boas, outras nem tanto. Se me perguntarem se foi sofrido, digo que foi, e até bastante; mas felizmente foi um tipo de sofrimento bem diferente daquele encarado por crianças de escolas públicas brasileiras.

É fato que, devido ao contraste gigantesco que existe entre a cultura japonesa e a brasileira, a comparação do ponto de vista educacional pode não ser muito válida, mas refletir um pouco não faz mal a ninguém.

Ah, e volto a lembrá-los: a lista acima foi baseada na minha experiência em uma escola pública de uma cidadezinha interiorana, com 7 mil habitantes.